As questões éticas relativas aos avanços da ciência e da tecnologia tendem cada vez mais a fazer parte do cotidiano das relações na sociedade e nas pesquisas científicas. Embora o progresso da ciência e da tecnologia implique em benefícios (atuais e potenciais) para o ser humano, deve haver respeito pela dignidade humana, bem como pelas normas e princípios éticos nas pesquisas envolvendo seres humanos.
Sem dúvida, pode-se afirmar que esta preocupação é relativamente recente na história da humanidade. Foi somente a partir da elaboração do Código de Nuremberg, em 1947 – surgido após os abusos experimentais cometidos na época da Alemanha Nazista - que se iniciou a regulamentação das pesquisas em seres humanos no mundo inteiro.
Todavia, os abusos na pesquisa (médica) não deixaram de ocorrer posteriormente, veja-se, por exemplo, o caso TUSKEGEE nos EUA:
De 1932 a 1972 o Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos da América patrocinou pesquisa para avaliar a evolução dos pacientes com sífilis, cujo projeto escrito nunca foi localizado. Envolveu 600 homens negros, pobres e analfabetos, sendo 399 com sífilis e 201 sem a doença, da cidade de Macon, no estado do Alabama.
A descoberta da cura da sífilis pela penicilina na década de 50 ocasionou a notificação em todas as instituições de saúde dos EUA para evitar que qualquer um dos participantes recebesse tratamento com antibióticos para não mascarar a evolução da doença.
Em 1972, Ralph Nader publicou uma matéria no New York Times denunciando o projeto, que se encerra meses depois com 74 sobreviventes - 28 morreram de sífilis e 100 de complicações da doença, 40 esposas foram contaminadas e 19 crianças tiveram sífilis congênita.
Após 27 anos, em 1997, houve o pedido de desculpas formais aos representantes dos participantes na pesquisa pelo Presidente Clinton, utilizando a TV em canal aberto.
Com isso, foi encerrada a pesquisa ficando o elo de Tuskegee com o não respeito ao ser humano.
Depois do Código de Nuremberg, surgiram importantes documentos internacionais que regulamentam as pesquisas em seres humanos:
Diretrizes Éticas para Pesquisas Biomédicas em Seres Humanos
Diretrizes Éticas para Pesquisas Biomédicas em Seres Humanos
Reunida em 1964, a Associação Médica Mundial elaborou normas adicionais ao Código de Nuremberg, que são revisadas sistematicamente e já estão consagradas internacionalmente.
Considerada como Documento da Humanidade pela OMS (Organização Mundial de Saúde), esta declaração faz a ligação entre a assistência médica e a pesquisa clínica e serve de orientação ética na conduta médica em geral.
Diante da persistência de problemas éticos e a fim de aprimorar e intensificar a regulamentação da pesquisa biomédica em nível mundial, em 1982 e 1993, a OMS e o Council for International Organizations of Medical Sciences (CIOMS) estabeleceram as Diretrizes Éticas Internacionais para Pesquisas Biomédicas em Seres Humanos.
Já nos anos noventa (século XX), em um esforço para evitar duplicação de trabalho, surgiu a necessidade de facilitar a aceitação de dados de ensaios clínicos, mesmo que estes tenham sido conduzidos em países diferentes. Isso fez com que diferentes regiões harmonizassem padrões para as boas práticas na pesquisa médica (clínica).
Assim, por meio da Conferência Internacional de Harmonização (ICH), a Comunidade Europeia, os Estados Unidos e o Japão (bem como o Canadá e a OMS, entre outros, como observadores, elaboraram diretrizes padronizando critérios em diferentes áreas relativas a medicamentos.
Assim, por meio da Conferência Internacional de Harmonização (ICH), a Comunidade Europeia, os Estados Unidos e o Japão (bem como o Canadá e a OMS, entre outros, como observadores, elaboraram diretrizes padronizando critérios em diferentes áreas relativas a medicamentos.
Dentro da estrutura da Conferência Internacional de Harmonização, surgiram as Diretrizes para Boas Práticas Clínicas, que estabelecem uma série critérios para planejamento, implementação, auditoria, conclusão, análise e relato de ensaios clínicos, de forma a assegurar sua confiabilidade (científica e ética).
Compete ao Conselho Nacional de Saúde (CNS), órgão vinculado ao Ministério da Saúde (MS), editar diretrizes e normas éticas regulamentadoras da pesquisa em seres humanos.
Três foram as resoluções emitidas pelo CNS/MS
É a primeira norma brasileira sobre ética na pesquisa em seres humanos, na área biomédica.
Esta norma ainda regulamentou o credenciamento de Centros de Pesquisa no país e recomendou a criação de um CEP em cada centro.
Além da efetiva implantação do sistema CEP/CONEP, de disseminar a criação de Comitês de Ética em Pesquisa e de harmonizar a análise dos projetos em todo Brasil, esta resolução foi elaborada com base na multi e interdisciplinaridade, preocupando-se com a pesquisa em seres humanos em qualquer área de conhecimento e não apenas com a pesquisa biomédica.
Ademais, definiu as seguintes Áreas Temáticas que devem ser analisadas pela CONEP:
1. Genética humana;
2. Reprodução humana;
3. Fármacos, medicamentos, vacinas e testes diagnósticos novos (fases I,II e II) ou não registrados no país (ainda que fase IV), ou quando a pesquisa for referente a seu uso com modalidades, indicações, doses ou vias de administração diferentes daquelas estabelecidas, incluindo seu emprego em combinações;
4. Equipamentos, insumos e dispositivos para a saúde novos, ou não registrados no país;
5. Novos procedimentos ainda não consagrados na literatura;
6. Populações indígenas;
7. Projetos que envolvam aspectos de biossegurança;
8. Pesquisas coordenadas do exterior ou com participação estrangeira e pesquisas que envolvam remessa de material biológico para o exterior; e
9. Projetos que, a critério do CEP, devidamente justificado, sejam julgados merecedores de análise pela CONEP;
Por outro lado, durante a vigência da Resolução 196/96, ainda foram editadas as seguintes resoluções complementares (quadro a seguir):
Resolução CNS/MS |
Resoluções complementares à 196/96 |
|
1 |
251/97 |
Área temática especial de novos fármacos, vacinas e testes diagnósticos e delega aos CEPs a análise final dos projetos nessa área, que deixa de ser especial |
2 |
240/97 |
Define representação de usuários nos CEPs e orienta a escolha. |
3 |
292/99 |
Estabelece normas específicas para a aprovação de protocolos de pesquisa com cooperação estrangeira, mantendo o requisito de aprovação final pela CONEP, após aprovação do CEP |
4 |
304/00 |
Contempla norma complementar para a área de Pesquisas em Povos Indígenas |
5 |
340/04 |
Aprova as Diretrizes para Análise Ética e Tramitação dos Projetos de Pesquisa da Área Temática Especial de Genética Humana |
6 |
346/05 |
Projetos multicêntricos |
7 |
347/05 |
Aprova as diretrizes para análise ética de projetos de pesquisa que envolva armazenamento de materiais ou uso de materiais armazenados em pesquisas anteriores |
8 |
370/07 |
O registro e credenciamento ou renovação de registro e credenciamento do CEP |
9 |
404/08 |
Declaração de Helsinque |
10 |
441/11 |
Aprovar as seguintes diretrizes para análise ética de projetos de pesquisas que envolvam armazenamento de material biológico humano ou uso de material armazenado em pesquisas anteriores |
Considerando o disposto na resolução 196/96, que impõe revisões periódicas, o CNS/MS editou recentemente a resolução 466/2012, que reafirma os aspectos éticos (da pesquisa em seres humanos) referidos na resolução anterior, reiterando que as pesquisas em seres humanos devem atender aos fundamentos éticos e científicos pertinentes definindo e ao mesmo tempo atualizando novas diretrizes e normas para a regulamentação da pesquisa envolvendo seres humanos no país.
De acordo com o sistema CEP/CONEP, toda pesquisa envolvendo (direta ou indiretamente) seres humanos deverá ser submetida à apreciação de um CEP.
Criado para defender os interesses dos participantes da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrões éticos, o CEP é um colegiado interdisciplinar e independente que deve existir nas instituições que realizam pesquisa em seres humanos no Brasil.
www.saude.gov.br/plataformabrasil
A Plataforma Brasil é uma base nacional e unificada de registros de pesquisas envolvendo seres humanos para todo o sistema CEP/CONEP.
Permite que as pesquisas sejam acompanhadas em seus diferentes estágios - desde sua submissão até a aprovação final pelo CEP e pela CONEP, quando necessário - possibilitando inclusive o acompanhamento da fase de campo, o envio de relatórios parciais e dos relatórios finais das pesquisas (quando concluídas).
O sistema permite, ainda, a apresentação de documentos também em meio digital, propiciando ainda à sociedade o acesso aos dados públicos de todas as pesquisas aprovadas. Pela Internet é possível a todos os envolvidos o acesso, por meio de um ambiente compartilhado, às informações em conjunto, diminuindo de forma significativa o tempo de trâmite dos projetos em todo o sistema CEP/CONEP.
O site abaixo orienta o pesquisador em como se cadastrar na Plataforma Brasil, como receber a sua senha e inserir o seu projeto de pesquisa.
Conforme refere a Resolução 466/12, o projeto de pesquisa a ser submetido à análise ética somente será apreciado se for apresentada toda documentação solicitada pelo sistema CEP/CONEP, considerada a natureza e as especificidades de cada pesquisa, sendo a Plataforma Brasil o sistema oficial de lançamento de pesquisas para análise e monitoramento do sistema CEP/CONEP.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/analise_avaliacao_etica.pdf
Nos termos da atual Resolução 466/12, TCLE é “o documento no qual é explicitado o consentimento livre e esclarecido do participante e/ou de seu responsável legal, de forma escrita, devendo conter todas as informações necessárias, em linguagem clara e objetiva, de fácil entendimento, para o mais completo esclarecimento sobre a pesquisa a qual se propõe participar”.
Trata-se de documento indispensável para a análise do CEP, podendo, no entanto, ser justificada sua dispensa em alguns casos específicos.
Contudo, para ser considerado válido, não basta a assinatura do TCLE do participante da pesquisa, devendo estar claro no projeto de pesquisa todas as etapas a serem necessariamente observadas para que o convidado a participar de uma pesquisa possa se manifestar, de forma autônoma, consciente, livre e esclarecida. Isso se chama de Processo de Consentimento, que, conforme dispõe a Resolução 466/12, exige o cumprimento das seguintes etapas:
“IV.1 - A etapa inicial do Processo de Consentimento Livre e Esclarecido é a do esclarecimento ao convidado a participar da pesquisa, ocasião em que o pesquisador, ou pessoa por ele delegada e sob sua responsabilidade, deverá:
a) buscar o momento, condição e local mais adequados para que o esclarecimento seja efetuado, considerando, para isso, as peculiaridades do convidado a participar da pesquisa e sua privacidade;Livro online de Ética na pesquisa em seres humanos
b) prestar informações em linguagem clara e acessível, utilizando-se das estratégias mais apropriadas à cultura, faixa etária, condição socioeconômica e autonomia dos convidados a participar da pesquisa; e
c) conceder o tempo adequado para que o convidado a participar da pesquisa possa refletir, consultando, se necessário, seus familiares ou outras pessoas que possam ajudá-los na tomada de decisão livre e esclarecida.
IV.2 - Superada a etapa inicial de esclarecimento, o pesquisador responsável, ou pessoa por ele delegada, deverá apresentar, ao convidado para participar da pesquisa, ou a seu representante legal, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para que seja lido e compreendido, antes da concessão do seu consentimento livre e esclarecido.”
“IV.3 - O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido deverá conter, obrigatoriamente:
a) justificativa, os objetivos e os procedimentos que serão utilizados na pesquisa, com o detalhamento dos métodos a serem utilizados, informando a possibilidade de inclusão em grupo controle ou experimental, quando aplicável;
b) explicitação dos possíveis desconfortos e riscos decorrentes da participação na pesquisa, além dos benefícios esperados dessa participação e apresentação das providências e cautelas a serem empregadas para evitar e/ou reduzir efeitos e condições adversas que possam causar dano, considerando características e contexto do participante da pesquisa;
c) esclarecimento sobre a forma de acompanhamento e assistência a que terão direito os participantes da pesquisa, inclusive considerando benefícios e acompanhamentos posteriores ao encerramento e/ ou a interrupção da pesquisa;
d) garantia de plena liberdade ao participante da pesquisa, de recusar-se a participar ou retirar seu consentimento, em qualquer fase da pesquisa, sem penalização alguma;
e) garantia de manutenção do sigilo e da privacidade dos participantes da pesquisa durante todas as fases da pesquisa;
f) garantia de que o participante da pesquisa receberá uma via do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido;
g) explicitação da garantia de ressarcimento e como serão cobertas as despesas tidas pelos participantes da pesquisa e dela decorrentes;
h) explicitação da garantia de indenização diante de eventuais danos decorrentes da pesquisa.”
1. Análise e Avaliação das Práticas de Revisão Ética. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/analise_avaliacao_etica.pdf
2. Brasil. Ministério da Saúde/Conselho Nacional de Saúde/Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Manual Operacional para Comitês de Ética em Pesquisa. Brasília: Ministério da Saúde, 2002. http://conselho.saude.gov.br/biblioteca/livros/Manual_Operacional_miolo.pdf
3. Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução 466/2012. http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf
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Design Gráfico [Diagramação]: Edipucrs
Ilustração e animação: Maria Fernanda Fuscaldo
Revisão de texto: dos autores
Ficha Catalográfica
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
M357e Marques, Caio Coelho
Ética na pesquisa em seres humanos [recurso eletrônico] / Caio Coelho Marques, Paulo Vinicius Sporleder de Souza. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2018.
Recurso on-line (44 p.). – (Coleção Integridade na Pesquisa em Foco ; 4)
Modo de acesso: http://www.pucrs.br/edipucrs/
ISBN 978-85-397-1132-1 (volume 4)
ISBN 978-85-397-1128-4 (Coleção Integridade na pesquisa em foco)
1. Pesquisa – Aspectos morais e éticos. 2. Ética. 3. Educação. I. Souza, Paulo Vinicius Sporleder de. II. Título. III. Série.
CDD 23. ed. 174
Clarissa Jesinska Selbach – CRB-10/2051
Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS
Coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa da PUCRS (CEP-PUCRS)
Relator Ad Hoc da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP)
Professor Titular da Faculdade de Medicina PUCRS
Diretor do Instituto de Bioética e Professor Titular da Faculdade de Direito da PUCRS
Presidente da Sociedade Rio-grandense de Bioética (SORBI)