3 As alternativas do modelo alemão em face da insuficiência dos efeitos ex tunc e a adoção das mesmas no Brasil

3.1 Considerações gerais sobre o controle de constitucionalidade na Alemanha

O sistema tedesco, assim como o brasileiro, adotou a tese da nulidade da lei inconstitucional, embora se tenha inspirado nas concepções de Kelsen ao instituir o controle abstrato de constitucionalidade. A jurisdição constitucional na Alemanha tem suas origens na Constituição de Weimar, de agosto de 1919, que instituiu a Suprema Corte de Justiça (Staatsgerichtshof), a ser regulamentada por uma lei federal. Conforme os estudos de Baracho,

a regulamentação veio através da Lei de 09 de julho de 1921. Aquela jurisdição era bem limitada, no que toca aos “litígios constitucionais” entre a federação e os estados-membros. Consagrava, ainda, os recursos constitucionais específicos para proteger os direitos fundamentais, de conformidade com o art. 93 da Constituição do Estado Livre da Baviera, de 14 de agosto de 1919, interposta após esgotada a via ordinária81.

Depois disso, vários projetos de lei foram apresentados a fim de ampliar o controle tanto no que tange às matérias a serem objeto do controle como no que tange à legitimidade para instaurar o processo; porém, nenhum deles chegou a ser apreciado pelo Parlamento Federal82. Segundo Baracho, aquele Tribunal exercia “funções bem menos importantes do que aquelas da Corte Constitucional de hoje”, porquanto “não conhecia das diferenças constitucionais autênticas, relativas às atribuições e competências dos órgãos constitucionais”83.

O art. 13, II, da Constituição de Weimar previa que se existissem dúvidas ou controvérsias sobre a constitucionalidade de uma norma estadual, poderia a autoridade competente da União ou do Estado requerer, nos termos da lei, o pronunciamento de um Tribunal Superior do Reich. A lei que disciplinou o processo no âmbito desse controle estabeleceu que a decisão do Tribunal Superior do Reich (Reichsgericht) ou do Tribunal de Finanças (Finanzgerichtshof), proferida nos termos do art. 13, II, da Constituição de Weimar, teria força de lei. Sustentou-se na doutrina que, “além de cassar a lei com eficácia erga omnes, a decisão expressava também uma interpretação autêntica da lei federal”84, ou seja, o direito federal não admitiria que viesse a ser editada uma nova lei estadual com o mesmo conteúdo censurado, nem mesmo quando se tratasse do ordenamento jurídico de um outro Estado.

Posteriormente, a Lei Fundamental de Bonn, de 23 de Maio de 1949, contemplou o Tribunal Federal Constitucional (Bundesverfassungsgericht), instaurado apenas em 1951. Houve várias discussões acerca da competência que se atribuiria àquela Corte, tendo a Assembléia Constitucional introduzido significativas modificações no Projeto de Herrenchiemsee, até que uma última versão da Comissão Geral de Redação foi aceita em 10 de fevereiro de 1949, correspondendo, hoje, ao art. 93 da Lei Fundamental, o qual atribui a legitimidade para instaurar o controle abstrato ao Governo Federal, a um Governo estadual e a um terço dos membros do Parlamento Federal, quando houvesse divergência de opiniões ou dúvidas sobre a compatibilidade de direito federal ou direito estadual com a Lei Fundamental ou sobre a compatibilidade de direito estadual com outro direito federal (art. 93, (1), n. 1)85.

Vê-se, pois, que o modelo alemão de controle de constitucionalidade, assim como o italiano, teve grande influência do sistema austríaco concebido por Kelsen. A adoção de uma ação direta, cuja legitimidade era atribuída a alguns órgãos políticos, e o efeito erga omnes das decisões proferidas pela Corte Constitucional são os traços mais marcantes dessa influência86.

Todavia, esses dois modelos foram além, dando solução a um problema persistente no modelo austríaco, que era a proibição de os juízes comuns exercerem qualquer análise da constitucionalidade da lei aplicável ao caso, sendo obrigados a aplicá-la mesmo que a considerassem inconstitucional. Nos sistemas alemão e italiano, estabeleceu-se, assim, o poder-dever dos juízes de submeterem a questão constitucional à Corte Suprema, a fim de que esta decidisse definitivamente sobre a constitucionalidade ou não da norma a ser aplicada87. No Direito alemão, esta regra encontra-se prevista no art. 100, (1), da Lei Fundamental, de 1949, o qual dispõe que

Se um tribunal considera uma lei, de cuja validade trata-se na decisão, inconstitucional, então o procedimento deve ser suspenso e, se se trata da violação da constituição de um estado, ser pedida a decisão do tribunal do estado competente para litígios constitucionais, se se trata da violação desta lei fundamental, a decisão do tribunal constitucional federal. Isso também vale quando se trata da violação desta lei fundamental pelo direito estadual ou da incompatibilidade de uma lei estadual com uma lei federal88.

Outra via para o controle de constitucionalidade são os recursos constitucionais (Verfassungsbeschwerde), que podem ser formulados por qualquer cidadão quando houver ofensa a um direito fundamental ou lesão a um dos direitos contidos nos arts. 20, IV, 33, 38, 101 e 104 da Lei Fundamental (art. 93, (1), n. 4a). Este recurso, porém, submete-se ao princípio da subsidiariedade, pois se exige que tenham sido exauridas as outras vias processuais.

A Lei Fundamental de Bonn previu em seu art. 94, (2), que a organização e o processo perante o Tribunal Federal Constitucional seriam regulamentados por lei federal. Cumprindo essa atribuição, a Lei do Bundesverfassungsgericht acabou, de certa forma, restringindo a admissibilidade da representação prevista no art. 93, (1), n. 2, dispondo no § 76 que:

a ação proposta pelo governo Federal, por um Governo Estadual ou por um terço dos membros do Parlamento Federal, nos termos do artigo 93, I, n. 2, da lei Fundamental, somente é admissível se um dos órgãos legitimados considerar que o direito federal ou direito estadual:
      1. em virtude de sua incompatibilidade formal ou material com a Lei Fundamental ou com outras disposições do direito federal, é nulo, ou
      2. considerar que disposição do direito federal ou direito estadual é válida após um Tribunal, uma autoridade administrativa ou um órgão da União ou de um Estado ter deixado de aplicá-la por considerá-la incompatível com a Constituição ou com outras disposições do direito federal89.

A instituição do Bundesverfassungsgericht implicou, pois, na definitiva concentração do poder para decidir acerca das questões de ordem constitucional. Segundo Baracho, “concebe-se a Corte Constitucional como um ‘poder neutro’ ou um ‘poder moderador’, desde que assegure o ‘equilíbrio dos poderes’, propiciando um controle recíproco entre eles”90. A maioria da doutrina e o próprio Tribunal Constitucional Federal conferem-lhe status de “órgão constitucional”, embora a Lei Fundamental se lhe refira apenas como um tribunal. Tem-se a idéia de um órgão constitucional que está acima dos demais, pois ao incorporar o papel de “defensor máximo da Constituição”, assume a atividade de um verdadeiro “intérprete autêntico” da Lei Fundamental91.