2.5 A justificativa para adoção da técnica da anulação71

Kelsen parte do pressuposto de que não existe a possibilidade de uma norma válida ser inconstitucional. Ou a lei é contrária à Constituição, e, neste caso, trata-se verdadeiramente de um ato inexistente; ou a lei é válida e, portanto, conforme ao texto constitucional. Isso porque o fundamento de validade das normas jurídicas reside na própria Constituição. Reconhece, porém, que é preciso encontrar um significado para a expressão “lei inconstitucional”, corrente na jurisprudência tradicional. Com este propósito, conclui que

o seu significado apenas pode ser o de que a lei em questão, de acordo com a Constituição, pode ser revogada não só pelo processo usual, quer dizer, por uma outra lei, segundo o princípio lex posterior derogat priori, mas também através de um processo especial, previsto pela Constituição. Enquanto, porém, não for revogada, tem de ser considerada como válida; e, enquanto for válida, não pode ser inconstitucional72.

Tendo-se em conta que o ato nulo não preenche suficientemente os requisitos que lhe são prescritos por uma norma jurídica superior, não há que se cogitar da necessidade da sua desconstituição, porquanto não se trata de algo que chegou a se constituir. Diferente é o caso do ato anulável, que, apesar de irregular, é válido enquanto não se lhe retire a validade. Não se pode definir de forma precisa, no entanto, o limite entre o nulo a priori (pseudolei) e o anulável. Tal tentativa caberia, em princípio, ao direito positivo. O estabelecimento de condições mínimas para que uma lei não seja nula evita que o descumprimento da norma jurídica com base na justificativa de que o ato simplesmente não é uma lei. Isso se evita, por exemplo, nos casos em que a Constituição estabelece que tudo o que for publicado como lei no Diário Oficial como lei deverá ser reconhecido, quaisquer que sejam as suas irregularidades enquanto não for anulado pela autoridade competente73.

Não obstante Kelsen reconheça a necessidade de se contemplar a nulidade absoluta, porquanto se trata de própria garantia da Constituição74, observa que mesmo a decisão que pronuncia a nulidade da lei deve ter efeito constitutivo, pois

do ponto de vista do direito positivo, da autoridade que decide sobre o ato supostamente nulo, nunca há mais que a anulabilidade, nem que apenas no sentido de que é possível apresentar a nulidade como um caso-limite de anulabilidade – uma anulação com efeito retroativo75.

A preferência pela técnica da anulação da lei inconstitucional e a sua crítica à “teoria da nulidade ab initio” justifica-se no ideal da segurança jurídica76, pois, a partir do momento em que se vive num Estado democrático, onde o povo se reúne em assembléia para editar as leis ou confia esse poder a um parlamento por ele eleito, a validade das normas legais é de se presumir. A confiança que a sociedade deposita no órgão legiferante é fundamental para a ordem jurídica, pois é com base nas normas por ele editadas que os indivíduos pautam as suas condutas.

Kelsen sugere, ainda, em nome da segurança jurídica, a previsão de um prazo para a entrada em vigor da sentença de anulação da lei inconstitucional, algo como a vacatio legis77. Essa possibilidade, aliás, consta na Constituição austríaca, mas não como regra, pois se deixou para a Corte Constitucional decidir se a decisão entrará em vigor na data da publicação ou até dezoito meses depois.