1.4 As limitações do controle difuso e a sua flexibilização

Não obstante o caráter democrático da via incidental, algumas críticas são feitas ao modelo puramente difuso de controle de constitucionalidade, na medida em que a constitucionalidade da lei somente poderá ser discutida se a questão for relevante para a solução do caso concreto e, se assim não for, restará afastada qualquer possibilidade de análise fiscalizatória de constitucionalidade. Cappelletti, ao analisar o modelo norte-americano, lembra os ensinamentos do Professor Kauper, o qual observa que naquele sistema as questões constitucionais jamais podem ser apresentadas às Cortes senão “‘in so far as they are issues relevant to the disposition of a concrete case or controversy’, com a conseqüência de que ‘the courts will not decide abstract questions of constitutional power’”41.

Destarte, a técnica norte-americana não abrange casos que, por razões diversas – seja por inércia das partes, seja por não ensejarem em si uma lide –, não tenham sido levados ao Poder Judiciário. Ou seja, enquanto ninguém argüir a inconstitucionalidade da norma num caso concreto, ela continuará vigendo e afrontando a Constituição. Neste sentido, anota Cappelletti que:

Com efeito, podem existir algumas leis que, ainda que inconstitucionais, fogem, porém, a toda possibilidade de controle incidental, pelo simples fato de que elas não podem, pelo seu particular conteúdo, dar lugar (ou pelo menos, de fato, não dão lugar) a lides concretas ou, em todo caso, a concretos episódios processuais civis, penais ou administrativos, para cuja solução ditas leis possam ser consideradas relevantes. Imagine-se, em particular, o caso de uma lei federal que viole a esfera de competência constitucional de um Estado-membro: se não puder surgir ou se, de qualquer modo, não surgir algum caso concreto em que aquela lei seja relevante, sobre ela, em um sistema de controle opere, exclusivamente, em via incidental, não poderá nunca ser exercido qualquer controle judicial de constitucionalidade42.

Verifica-se nos Estados Unidos, contudo, a existência de fórmulas que, de alguma maneira, acabaram amenizando as restrições da análise da questão constitucional no controle difuso. Uma delas foi a admissibilidade da figura do amicus curiae – interessados que mesmo não sendo partes podem se manifestar ou contribuir com pareceres. Aliás, a presença dos amici permite uma pluralização do debate constitucional de forma a garantir a sua democratização43.

Aqui no Brasil também se admite a participação do amicus curiae, porém essa possibilidade foi aceita apenas com a Lei nº 9.868/99 (art. 7º, § 2º) e restritivamente aos processos de controle abstrato de constitucionalidade. Ficou registrado na exposição de motivos do Projeto da referida Lei que se trata “de providência que confere um caráter pluralista ao processo objetivo de controle abstrato de constitucionalidade, permitindo que o Tribunal decida com pleno conhecimento dos diversos aspectos envolvidos na questão”44.

Outro instituto que acaba por relativizar o modelo difuso norte-americano é o writ of certiorari, que consiste numa petição na qual se requer a revisão da sentença de um juízo inferior. Esse sistema confere ampla margem de discricionariedade à Suprema Corte, que decide quais as causas são merecedoras do exercício do seu controle, levando-se em conta a relevância da questão, que normalmente é constitucional. Esta fórmula foi adotada pela primeira vez em 1891, pela Lei do Tribunal de Apelação, tendo em vista o significativo aumento do número de casos encaminhados à Suprema Corte. A Lei Judicial de 1925 também dispôs sobre as possibilidades de se afastar a maioria das petições de revisão que não chegassem na forma de apelações vinculantes. E, por fim, em 1988, eliminou-se de forma definitiva a jurisdição de apelação, de natureza obrigatória, referente aos Tribunais federais. Verifica-se, assim, a proximidade da Suprema Corte com os Tribunais Constitucionais, tendo em vista a sua plena discricionariedade na eleição das causas que irá julgar, o que a converte em “‘árbitro efetivo da forma do governo federal’, acentuando, em razão de tudo isso, sua natureza de órgão político”45/SUP>.

Quanto aos efeitos das declarações de inconstitucionalidade, o tradicional modelo norte-americano também não está livre de críticas, tanto que a Suprema Corte se viu obrigada a adotar novos critérios para fixar a eficácia temporal da decisão declaratória de inconstitucionalidade, tendo em vista as conseqüências da retroatividade no âmbito da própria Administração da Justiça.

Até 1965, a tese da nulidade da lei inconstitucional era adotada sem exceções. Foi, então, nesse ano, que se abriu uma brecha para a atribuição de eficácia pro futuro às decisões declaratórias de inconstitucionalidade. Trata-se do caso Linkletter versus Walker (381 US 25, 1965), no qual Linkletter pediu a revisão da sentença que lhe havia condenado com base num tipo de provas reconhecido, no caso Mapp versus Ohio (367 US 643, 1961), como contrário ao due process of law.

Gilmar Ferreira Mendes e Ives Gandra Martins bem explicam a discussão que o caso Mapp versus Ohio envolveu:

A condenação de Dolree Mapp foi realizada com base em evidências colhidas pela polícia quando adentraram sua residência, em 1957, apesar de não disporem de mandado de busca e apreensão. A Suprema Corte, contrariando o julgamento de 1ª instância, declarou que a “regra de exclusão” (baseada na 4ª Emenda da Constituição), que proíbe o uso de provas obtidas por meios ilegais nas Cortes federais, deveria ser estendida também às Cortes estaduais. A decisão provocou muita controvérsia, mas os proponentes da “regra de exclusão” afirmavam constituir esta a única forma de assegurar que provas obtidas ilegalmente não fossem utilizadas. A decisão de Mapp v. Ohio superou o precedente Wolf v. Colorado, 338 U.S. 25 (1949), tornando a regra obrigatória aos Estados, e àqueles acusados, cujas investigações e processos não tinham atendido a esses princípios, era conferido o direito de habeas corpus46 (grifo do autor).

A Suprema Corte não acolheu a pretensão de Linkletter, sob o fundamento de que a Constituição não proíbe nem exige o efeito retroativo das declarações de inconstitucionalidade. Ponderaram-se as conseqüências da decisão que reconhecesse a eficácia retroativa, pois havia muitas situações semelhantes já definidas pelo Judiciário e o reconhecimento da eficácia ex tunc implicaria uma avalanche de demandas pretendendo a revisão desses casos já decididos, o que comprometeria a própria Administração da Justiça. Conforme observa Garcia de Enterría,

aplicando este criterio, la Sentencia valoró que la aplicación retroactiva de esa doctrina sobre la inadmisión constitucional de ciertas pruebas supondría “abrumar hasta el extremo a la Administración de justicia”, puesto que esta tendría que revisar virtualmente todas (o en gran número) las condenas en curso de ejecución, cuando ya habrían desaparecido los testigos directos y la posibilidad de nuevas valoraciones del conjunto de las pruebas restantes, y que este serious disrupt o desorganización profunda de la Administración de justicia debía de evitarse. El efecto de la declaración de inconstitucionalidad se remitió, pues, a la fecha de la misma, esto es, para el futuro, prospectivamente47 (grifo do autor).

Ao negar o pedido de habeas corpus de Linkletter, a Suprema Corte decidiu que às decisões finais das Cortes estaduais anteriores ao caso Mapp versus Ohio não se aplicaria a norma proibitiva da utilização de provas ilícitas, que anteriormente se entendia aplicável apenas às Cortes federais. Neste sentido a opinião majoritária da Suprema Corte:

“Uma vez aceita a premissa de que não somos requeridos e nem proibidos de aplicar uma decisão retroativamente, devemos então sopesar os méritos e deméritos em cada caso, analisando o histórico anterior da norma em questão, seu objetivo e efeito, e se a operação retrospectiva irá adiantar ou retardar sua operação. Acreditamos que essa abordagem é particularmente correta com referência às proibições da 4ª emenda, no que concerne às buscas e apreensões desarrazoadas. Ao invés de ‘depreciar’ a Emenda devemos aplicar a sabedoria do Justice Holmes que dizia que ‘na vida da lei não existe lógica: o que há é experiência’”48.

Vê-se, pois, uma evolução da jurisprudência norte-americana, que passou a admitir, além dos efeitos retroativos amplos, decisões declaratórias de inconstitucionalidade com efeitos ex nunc (prospective overruling), conforme ponderação a ser feita caso a caso. Aliás, chegou-se a estabelecer naquele sistema técnicas distintas no que tange à solução dada à eficácia prospectiva das sentenças de inconstitucionalidade. Pela regra da pure prospectivity, não se reconhece efeito retroativo nem mesmo ao caso que provocou a manifestação da Corte acerca da constitucionalidade da norma, apresentando tão-somente efeitos para o futuro. Tal regra, todavia, diante da perplexidade que causa por não se aplicar ao próprio processo em que a questão é discutida, abre espaço para a tese da limited prospectivity, segundo a qual a sentença será aplicada somente aos casos iniciados após a decisão, possuindo, porém, certa dose de retroatividade, na medida em que se aplica ao caso que originou a questão49.