1.3 A nulidade absoluta da lei inconstitucional no Brasil

O sistema brasileiro de controle de constitucionalidade adota como regra a tese da nulidade, pela qual uma lei declarada inconstitucional é tida como nula ipso jure. A eficácia da declaração de inconstitucionalidade é ex tunc, retroagindo para eliminar a lei do ordenamento jurídico. Trata-se de uma nulidade absoluta, comparada, muitas vezes, ao próprio ato inexistente29, porquanto se parte da premissa de que a lei inconstitucional sequer gera efeitos. Como ato inexistente, a lei não chega a entrar no mundo jurídico, fica no mundo dos fatos. Trata-se de algo que não é, pois não preenche de forma suficiente os pressupostos necessários para constituir um ato jurídico.

A constitucionalidade da lei seria condição sine qua non da sua própria existência. Destarte, não haveria falar em desconstituição da lei eivada de inconstitucionalidade, mas, sim, em declaração de inconstitucionalidade da mesma. Note-se que, embora alguns autores, como Francisco Campos, cheguem a afirmar que a lei inconstitucional é ato inexistente30, a questão se situa, de acordo com a clássica teoria do fato jurídico, no campo da validade. Conforme ensina Luís Roberto Barroso,

uma lei que contrarie a Constituição, por vício formal ou material, não é inexistente. Ela ingressou no mundo jurídico e, em muitos casos, terá tido aplicação efetiva, gerando situações que terão de ser recompostas. Norma inconstitucional é norma inválida, por desconformidade com regramento superior, por desatender requisitos impostos pela norma maior31 (grifos do autor).

O mesmo autor observa que “se estiverem presentes os elementos agente, forma e objeto, suficientes à incidência da lei, o ato é existente. Se, além disso, estiverem presentes os requisitos competência, forma adequada e licitude-possibilidade, o ato, que já existe, será também válido”32. No plano da validade, o ato jurídico, conforme o grau de violação aos requisitos de validade, será nulo ou anulável33. Aliás, para Kelsen, “dentro da ordem jurídica, a nulidade é apenas o grau mais alto da anulabilidade”34.

Ao distinguir a nulidade da anulabilidade, no que tange aos efeitos sobre o ato normativo defeituoso, Marcelo Neves observa que, de regra, a nulidade implica: “1) a impossibilidade de convalidação da norma; 2) a eficácia ex tunc da decretação de invalidade da norma. Já na anulabilidade, que constitui situação menos grave, o sistema admite convalidação e só atribui eficácia ex nunc à decretação de invalidade da norma”35.

No Brasil, como visto, o princípio da nulidade da lei inconstitucional foi trazido por Rui Barbosa, na mesma época da promulgação da Constituição Republicana de 1891, a qual foi marcada pela influência dos sistemas federalista e republicano dos Estados Unidos da América. Para ele, considerar nula uma lei que contrariasse a Lei Maior resultava da própria essência do sistema, pois “onde se estabelece uma Constituição, com delimitação da autoridade para cada um dos grandes poderes do Estado, claro é que estes não podem ultrapassar essa autoridade, sem incorrer em incompetência, o que em direito equivale a cair em nulidade”36.

A essência do sistema está na supremacia da Constituição, fruto da vontade soberana do povo. As Constituições escritas trazem a estrutura do Estado e os princípios fundamentais que devem nortear todos os atos do governo. Sendo assim, não podem ser modificadas a qualquer tempo por simples lei ordinária, pois isso implicaria no desmantelamento dos direitos conquistados pelos cidadãos. Apenas uma Constituição rígida, alterável somente por processos mais difíceis do que os necessários para a alteração das demais normas jurídicas, revela a sua verdadeira supremacia. Não se verifica a existência, nos sistemas constitucionais contemporâneos, de constituições totalmente costumeiras, as quais “coincidem historicamente, em larga parte, com a presença de regimes absolutistas”37.

Embora não se deva confundir o conceito de Constituição rígida com o de Constituição escrita38, o mais comum e, também, o mais lógico, é que as escritas sejam rígidas, ou então a Constituição seria apenas mais uma lei, como todas as outras. É o que se pode observar, de certa forma, no sistema constitucional inglês,

exemplo típico de uma Constituição flexível, na qual tanto a regra constitucional costumeira como a regra constitucional escrita são feitas e reformadas no Parlamento por idêntico processo aplicável à feitura e revogação da lei ordinária, ou seja, um processo de expressão da vontade parlamentar por maioria simples39.

O modelo difuso de controle de constitucionalidade tem feição liberal, individualista, que desempenha bem o papel de defesa dos cidadãos frente ao Estado. A partir de uma visão substantiva da democracia, pode-se concluir que a abertura da via recursal para se questionar a constitucionalidade das leis garante uma participação democrática na fiscalização dos atos normativos do Poder.

Para Dworkin, aliás, democracia é mais do que um procedimento no intuito de assegurar a adoção de instituições representativas da vontade do povo. É, também, um critério a ser utilizado na avaliação das políticas públicas, pois se faz necessário que “o governo ‘trate todos os submetidos a seu domínio como tendo igual status moral e político’, não sendo suficiente a adoção do princípio majoritário para a tomada de decisões”40.