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Diferentemente do que ocorrera no Brasil, Estado unitário, o controle de constitucionalidade nos Estados Unidos evoluíra em harmonia com o desenvolvimento do federalismo, culminando na reunião de vários entes para a formação de um Estado soberano. O Poder Judiciário passou a exercer papel fundamental na garantia do pacto federativo norte-americano. Anota Ronaldo Poletti que “conforme se alterou a federação do dualismo ao cooperativismo, também foi modificada a prática da declaração de inconstitucionalidade pela Suprema Corte, até receber o Judiciário a competência pelas emendas 13, 14, e 15”14.
Ao final do século XVIII, no artigo número 78 de O Federalista15, Alexander Hamilton explica a importância da revisão judicial para a preservação da democracia. Embora não houvesse referência expressa na Constituição dos Estados Unidos de que cabia aos tribunais federais interpretar as leis de acordo com o espírito da Constituição, essa idéia tomou força e marcou o modelo norte-americano de controle de constitucionalidade, judicial e difuso por excelência.
Hamilton asseverara, todavia, que o fato de os juízes serem responsáveis pela interpretação das leis e, conseqüentemente, da Constituição, não significava uma superioridade do Judiciário sobre o Legislativo. O controle judicial apenas colocava o poder do povo acima de ambos, ou seja, sempre que a vontade do Legislativo, representada nas leis, se opusesse à do povo, os juízes deveriam obedecer a esta e não àquela. O dever de obediência à Constituição encontra fundamento na sua superioridade normativa, porquanto representa a base dos interesses da sociedade16.
O autor justifica, ainda, a competência do Judiciário para o controle de constitucionalidade das leis, no fato de que dificilmente o legislador corrigiria as leis que tivesse elaborado, pois “o mesmo espírito que predominou em sua elaboração estaria presente quando da interpretação; seria ainda menos provável que homens que infringiram a Constituição, no papel de legisladores, estivessem dispostos a reparar seus erros quando investidos do papel de juízes”17.
A nulidade de uma lei que não observasse as limitações impostas pela Constituição à autoridade legislativa era, para Hamilton, uma obviedade, como se vê:
Não há posição que se apóie em princípios mais claros que a de declarar nulo o ato de uma autoridade delegada, que não esteja afinada com as determinações de quem delegou essa autoridade. Conseqüentemente, não será válido qualquer ato legislativo contrário à Constituição. Negar tal evidência corresponde a afirmar que o representante é superior ao representado, que o escravo é mais graduado que o senhor, que os delegados do povo estão acima do próprio povo, que aqueles que agem em razão de delegações de poderes estão impossibilitados de fazer não apenas o que tais poderes não autorizam, mas sobretudo o que eles proíbem18.
O Presidente da Suprema Corte norte-americana, John Marshall, quinze anos depois, no caso Marbury vs. Madison (1803)19, defendendo a tese do controle judicial, argumenta que de nada adiantaria os juízes jurarem a Constituição se não pudessem declarar nulas as leis que com ela fossem incompatíveis. Marshall observa, aliás, que essa atribuição do Poder Judiciário é uma decorrência lógica dos sistemas que adotam uma Constituição escrita, dotada de superioridade normativa. Partindo dessa premissa, pôde concluir que o texto da Constituição dos Estados Unidos “confirma e corrobora o princípio essencial a todas as constituições escritas, segundo o qual é nula qualquer lei incompatível com a Constituição; e que os tribunais, bem como os demais departamentos, são vinculados por esse instrumento”20.
Foi nos Estados Unidos que se acentuou, pois, com base na supremacia da Constituição, a idéia de que a expressão lei inconstitucional configura uma contradição em si, pois ou a lei é constitucional ou ela não chega a ser lei. Cooley traduz esse pensamento dizendo que “semelhante disposição rigorosamente não é uma lei porque não estabelece regra alguma; é meramente uma fútil tentativa para estabelecer uma lei”21.
John Marshall, o grande precursor do princípio da nulidade da lei inconstitucional em face da supremacia da Constituição, chegou a afirmar, na Convenção de Virgínia, o seguinte:
Tanto a idéia do judicial review como a da nulidade da lei inconstitucional ficaram consagradas na tradição norte-americana no citado caso Marbury versus Madison, em que Marshall ressalta, mais uma vez, a superioridade normativa da Constituição, posta de maneira ainda mais clara no seguinte trecho:
Ronaldo Poletti, ao comentar trechos da decisão de Marshall, deixa claro o pensamento dominante naquele sistema no sentido de que a lei inconstitucional, de fato, não poderia ser considerada uma lei, pois “essa teoria adere à idéia da Constituição escrita e deve ser aceita pelos Tribunais. E se nula for a resolução legislativa por opor-se contra a Constituição, os Tribunais não podem considerá-la lei”24.
Segundo Tribe, Marshall justifica o controle judicial sob dois aspectos. O primeiro seria o fato de que a Constituição é a lei fundamental de uma nação e não apenas um estatuto de organização política ou de distribuição de direitos e responsabilidades que deverão definir as diretrizes das instituições jurídicas. O segundo seria o fato de que a Constituição, por ser lei, pode ser conhecida e aplicada pelas Cortes, as quais exercerão a tarefa de identificar o conteúdo da Constituição. A dificuldade de separação entre os dois aspectos leva à conclusão de que a própria análise do judicial review “deve ser cuidadosa ao distinguir o dançarino da dança; ou seja, a tarefa é evitar os extremos do direito natural e do positivismo”25.
As teses da declaração de nulidade e a do mero afastamento da lei inconstitucional no caso concreto pelo Judiciário correlacionam-se, respectivamente, com esses dois aspectos da revisão judicial. Por um lado, tem-se que a nulidade decorre do fato de que a Constituição opera por si mesma, sendo a decisão declaratória de inconstitucionalidade apenas um reconhecimento da sua força. Por outro, a questão constitucional somente será levada ao Judiciário para a solução de um caso concreto, cuja decisão produzirá efeitos apenas em relação às partes envolvidas, sem se estender aos casos futuros26.
O direito norte-americano, com base na tradição inglesa do common law, adotou o stare decisis como técnica para garantir a estabilidade e a coerência das decisões judiciais. Os precedentes das Cortes Superiores, todavia, têm força vinculante apenas naqueles casos em que há identidade de fatos ou de questões de direito, não ficando os juízes limitados a um mesmo precedente quando se verificar a mudança de entendimento com base na desarrazoabilidade ou erronia da solução que vinha sendo adotada27. Em razão disso se estabeleceram, respectivamente, as técnicas da overruling e distinguishing28, que também podem ser aplicadas nos casos de precedentes cujo objeto seja uma questão constitucional.
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