CAPÍTULO I
A EVOLUÇÃO DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL
E A INFLUÊNCIA DOS MODELOS NORTE-AMERICANO, AUSTRÍACO E
ALEMÃO QUANTO AOS EFEITOS TEMPORAIS DA DECLARAÇÃO DE
INCONSTITUCIONALIDADE

1 A declaração de efeitos ex tunc e a influência do modelo norte-americano no Brasil

1.1 A Origem do controle de constitucionalidade no Brasil

No regime da Constituição do Império, de 1824, não se verificava possível qualquer margem para o controle judicial de constitucionalidade1 . Esse era um reflexo do constitucionalismo francês, que repudiava a idéia de um Poder intervindo nos demais, porquanto a anulação de um ato do Executivo ou Legislativo pelo Judiciário implicaria afronta à separação dos Poderes2 . Ademais, não se pôde fazer aqui uma construção jurisprudencial preconizando a atribuição do Judiciário para o controle de constitucionalidade, como ocorrera nos Estados Unidos, tendo em vista a instituição de um Poder Moderador – função delegada privativamente ao Imperador, para que velasse incessantemente “sobre a manutenção da Independência, equilíbrio, e harmonia dos demais Poderes Políticos” (art. 98 da Constituição de 1824).

A partir da Proclamação da República e da adoção da forma federativa de Governo abriu-se espaço para o controle jurisdicional de constitucionalidade. A Constituição Provisória de 1890 (Decreto 510, de 22 de junho de 1890) atribuiu competência recursal ao Supremo Tribunal Federal para analisar as questões de ofensa ao texto constitucional ou às leis federais (alínea b do § 1° do art. 583). E, ainda, o Decreto 848, de 11 de outubro do mesmo ano, o qual organizou a Justiça Federal, além de prever explicitamente a competência do Supremo em matéria de constitucionalidade (art. 9°, parágrafo único, alíneas a e b), antecipou em seu art. 3º aquilo que viria a ser defendido por Rui Barbosa com a Constituição Republicana: o controle por via de exceção4.

A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891 implantou o controle de constitucionalidade das leis nos moldes do modelo norte-americano, ou seja, preconizou a forma incidental de controle, no qual historicamente se adota a tese da nulidade da lei inconstitucional. Rui Barbosa, mentor daquela Constituição, reconhece a lei inconstitucional como nula, alertando, porém, para o fato de que os tribunais e juízes não anulam as leis inconstitucionais, mas sim, declaram a sua nulidade, porque o Judiciário não tem competência para anular atos do Legislativo ou do Executivo. São coisas diversas. Assim, ensina que

uma coisa é declarar a nullidade. Outra, annullar. Declarar a nulidade, isso fazem os tribunaes, legitimamente, a respeito de leis ordinarias, quando inconciliaveis com a lei fundamental. Em taes casos declarar nulla uma lei é simplesmente consignar a sua incompatibilidade com a Constituição, lei primaria e suprema. Hão de o fazer, porém, na exposição das razões do julgado, como consideração fundamental da sentença, e não, em hypothese nenhuma, como conclusão da sentença e objecto do julgado. Se o fizessem, se o dispositivo da sentença pudesse consistir na annullação formal da lei, o acto do juiz então rescindiria, cassaria, revogaria o acto do legislador. (....) Cancelar, abrogar, rescindir, cassar, destruir uma lei, é, rigorosamente, legislar. As leis, logo, não se annullam, technicamente, senão por outras leis5. (grifo do autor).

Mais adiante, reconhece que a anulação da lei inconstitucional é uma conseqüência indireta da solução que se dá ao caso concreto, pois embora não seja expressamente revogada, ela recebe um “golpe mortal”, considerando-se desde então inexeqüível6.

O controle de  constitucionalidade   no sistema   brasileiro   dava-se,   originalmente, pela via incidental tão-somente. A Constituição de 1891 previa que a matéria constitucional seria conhecida pelos juízes e tribunais nas   causas   em que   fosse    levantada7.    Prescrevia, ainda, que das decisões de última instância dos tribunais caberia recurso ao Supremo Tribunal Federal quando se contestasse a validade de leis ou atos dos Governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado considerasse válidos esses atos, ou essas leis impugnadas (art. 59, b)8 9.

Tem-se, pois, que qualquer juiz ou tribunal podia analisar a questão constitucional quando trazida aos autos pelas partes, devendo afastar a aplicação da lei contrária à Constituição. Não se tratava, em realidade, de competência para declarar nula a lei, mas apenas para afastá-la a fim de solucionar o caso concreto. Como diz Bonavides, “a sentença que liquida a controvérsia constitucional não conduz à anulação da lei, mas tão-somente à sua não-aplicação ao caso particular, objeto da demanda. É controle por via incidental”10 . Aliás, a Lei nº 221, de 20 de novembro de 1894, que completou a Justiça Federal, deixava isso claro ao estabelecer no § 10 do art. 13 que: “os juízes e tribunais apreciarão a validade das leis e regulamentos e deixarão de aplicar aos casos ocorrentes as leis manifestamente inconstitucionais e os regulamentos manifestamente incompatíveis com as leis e com a Constituição”.

Durante a vigência do modelo exclusivamente difuso, transportado do sistema norte-americano, a declaração de nulidade da lei inconstitucional caberia, tecnicamente, apenas ao Supremo Tribunal Federal, última palavra acerca da constitucionalidade das leis. Somente com a Constituição Federal de 1934 (art. 179)11, instituiu-se a “reserva de plenário”, consistente na possibilidade de os Tribunais de Apelação, também pela via incidental, declararem a inconstitucionalidade de lei ou ato do poder público, mediante a maioria absoluta de votos da totalidade dos juízes12. Aos juízes de primeiro grau, portanto, cabia – e isso é assim até hoje – apenas afastar a aplicação da lei inconstitucional, deixando de conhecê-la.

Quanto aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade no controle difuso brasileiro, estes se projetam inter partes e ex tunc, havendo no Brasil a possibilidade de se estender a eficácia a terceiros. Neste caso, exige-se que o Senado Federal, por resolução, suspenda, no todo ou em parte, a execução da lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. Trata-se de norma implantada com a Constituição de 1934 (art. 9º, IV) e que se manteve mesmo após a introdução do controle direto de constitucionalidade no Brasil, estando prevista, atualmente, no art. 52, X, da Constituição Federal. O dispositivo permite a atribuição de efeito erga omnes, porém ex nunc, não retroativo. O efeito ex tunc no controle difuso é sempre exclusivo para as partes do caso concreto. Quem, portanto, quiser beneficiar-se dele terá de entrar com ação judicial.

No que tange à função do Senado Federal de dar eficácia erga omnes às decisões declaratórias de inconstitucionalidade do Supremo em sede de controle difuso, tem sido defendida a tese de que a norma disposta no art. 52, X, da Constituição, deve ser entendida como um dever de dar publicidade à suspensão da execução da lei declarada inconstitucional e não de suspender a execução da mesma. Não obstante o texto constitucional seja claro, o Supremo Tribunal Federal caminha para este entendimento, impedindo que a eficácia de sua decisão fique à mercê da iniciativa do Senado Federal. Segundo o Min. Gilmar Mendes, Relator da Reclamação n. 4335/AC,

esta solução resolve de forma superior uma das tormentosas questões da nossa jurisdição constitucional. Superam-se, assim, também, as incongruências cada vez mais marcantes entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e a orientação dominante na legislação processual, de um lado, e, de outro, a visão doutrinária ortodoxa e – permita-nos dizer – ultrapassada do disposto no art. 52, X, da Constituição de 198813.

Essa é uma das constatações que levam à conclusão de que o controle de constitucionalidade pela via indireta vem aproximando-se, cada vez mais, do controle abstrato. A outra decorre do art. 103-A e do § 3º do art. 102 da Constituição Federal, acrescentados pela Emenda Constitucional n. 45/2004. Quanto ao primeiro, introduziu-se a possibilidade de o STF, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, editar súmula com efeito vinculante. E quanto ao segundo, a exigência de que o recorrente demonstre, na interposição do recurso extraordinário, a “repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso” apenas confirma a tendência de se estender os efeitos da decisão para todos.