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Embora o § 31, (2), 2º e 3º períodos, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, ao se referir à declaração de incompatibilidade como uma espécie de decisão, tenha trazido a possibilidade daquela Corte declarar a inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade da norma, a falta de previsão expressa dos casos em que essa variante poderia ser adotada gerou certa insegurança na doutrina. Coube ao Tribunal, pois, fazer uma construção jurisprudencial das hipóteses em que se configuraria mais razoável deixar de pronunciar a nulidade da norma.
A origem dessa variante de decisão foi a chamada exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade, ou seja, aqueles casos em que a lei institui uma vantagem (como isenções tributárias, benefícios previdenciários) para um determinado grupo de pessoas e exclui, implícita ou explicitamente, outros setores que se encontrem em situação idêntica, ferindo, assim, o princípio da isonomia. O Tribunal Constitucional, quando se depara com este tipo de situação, não tem, em princípio, margem para uma ação mais concreta. Se anular a norma que prevê um benefício para um determinado segmento de cidadãos e exclui outros, desaparecerá o direito tanto para o postulante e o grupo excluído como para aqueles que, inicialmente, haviam-se beneficiado com a norma. Por sua vez, declarando-se nula a cláusula de exclusão, para que o grupo excluído passe a ser abrangido pela vantagem, estar-se-á, primeiro, invadindo a função legislativa e, segundo, causando um baque no orçamento público. Não se justificaria, portanto, uma simples pronúncia de nulidade nesses casos104.
A influência no Brasil dessa solução adotada pela Corte Constitucional alemã pode ser exemplificada com o julgamento do Ag 313.373-SP, Relator Min. Celso de Mello, em que o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou a inviabilidade de se estender vantagem pecu.niária a servidores públicos que haviam sido excluídos do benefício, eis que ao suprir a omissão deixada pelo legislador, estaria exercendo função legislativa. Assim, restou assentado que:
A declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade se justifica também nos casos de omissão legislativa, em que a Constituição determina o dever de legislar. Isso porque, conforme a jurisprudência do Tribunal Constitucional, não se pode declarar a nulidade de uma lacuna. Mesmo nos casos de normatização incompleta do legislador, o Tribunal se abstém de declarar a nulidade, porquanto não se trata de inconstitucionalidade da regulação, mas sim, da sua incompletude106.
No Brasil, pelas mesmas razões, a omissão legislativa enseja uma declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, não podendo o Judiciário “afastar” a omissão e executar diretamente o direito à expedição de um ato normativo. A Constituição de 1988 previu expressamente, no art. 5º, LXXI, a concessão de mandado de injunção nos casos em que a falta de norma regulamentadora tornar inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. E, ainda, em sede de controle abstrato, previu, no art. 103, § 2º, a ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão, que em caso de procedência, ensejará a comunicação ao Poder Legislativo competente para a adoção das providências necessárias ou, em se tratando de órgão administrativo, para que o faça em trinta dias. Note-se que o Supremo Tribunal Federal atribui a ambos os institutos eficácia erga omnes, diferenciando-se o mandado de injunção da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, fundamentalmente, pelo fato de aquele envolver direito subjetivo específico107.
A liberdade de conformação do legislador é mais uma hipótese de renúncia à declaração da nulidade e deriva daqueles casos de inconstitucionalidade em que se verifica ofensa ao princípio da igualdade. Tornou-se uma verdadeira “cláusula geral para justificar a aplicação da declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade”108. Este entendimento da Corte Constitucional alemã, todavia, encontra fundadas críticas na doutrina, uma vez que “a discricionariedade do legislador não legitima a conservação parcial de uma norma inconstitucional, assim como a discricionariedade administrativa não obsta à cassação do ato administrativo eivado de ilegalidade”109.
Por fim, um último e importantíssimo argumento para a declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade é o relativo às conseqüências da declaração de nulidade, tendo em vista que os efeitos retroativos da decisão cassatória da lei inconstitucional podem trazer um vácuo legislativo que se afaste ainda mais da vontade constitucional. Esse argumento também justifica, portanto, que se deixe a cargo do legislador corrigir a imperfeição identificada. O Tribunal Constitucional, aliás, verificou esta situação em casos como o do vencimento de servidores públicos, em que, se declarada a nulidade, não haveria fundamento legal para se proceder ao pagamento de vencimentos a determinados segmentos do funcionalismo110.
A consideração sobre conseqüências que podem advir da declaração de nulidade constitui uma justificativa geral, no sentido de se buscar uma solução que melhor represente a vontade da Constituição. No Brasil, este foi um dos argumentos expostos na Justificação de Motivos do Projeto que resultou na Lei nº 9.868/99, que regula a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, a fim de demonstrar a importância de se abrir no sistema de controle de constitucionalidade uma brecha para a declaração de inconstitucionalidade com efeitos ex nunc como medida concretizadora da vontade da Constituição, levando-se em conta o princípio da segurança jurídica ou relevante interesse social111.
Vistas as justificativas que poderão ensejar a declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade, necessário fazer um breve apanhado das conseqüências dessa variante de decisão, também com base fundamentalmente na jurisprudência e na Lei do Bundesverfassungsgericht. A mais evidente delas é, pois, a obrigação do legislador de eliminar a situação inconstitucional. Esse dever encontra fundamento no § 31, nº 1 e 2, da Lei Orgânica do Tribunal, que atribui força de lei e efeito vinculante às suas decisões.
Quanto à aplicação da lei declarada inconstitucional, com ou sem pronúncia de nulidade, o Tribunal Constitucional entende que, a partir da data da decisão, a norma não mais pode ser aplicada nem pelos demais órgãos do Judiciário nem por quaisquer órgãos do Executivo. No controle abstrato, pois, as decisões têm eficácia erga omnes e vinculante. No que se refere ao controle concreto e ao recurso constitucional dirigido contra decisões judiciais, a primeira conseqüência é a suspensão do processo enquanto a Corte Constitucional não decidir se houve ou não ofensa à Constituição. Decidida a controvérsia, os autos baixam ao Tribunal de origem, devendo este aguardar a promulgação das novas regras. Portanto, a regra – seja numa ação específica, seja numa questão incidental ou por meio do recurso constitucional – é que se suspenda a aplicação da norma inconstitucional, justificando-se o contrário apenas por razões de segurança jurídica, em que o vácuo legislativo resultante da não-aplicação da norma afaste-se ainda mais da vontade da Constituição112.
Verifica-se, assim, com uma ponta de estranheza, que a Corte Constitucional equipara a declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade com a declaração de nulidade, no que tange à aplicação subseqüente da norma, ao estabelecer que ela não poderá ser aplicada após a decisão declaratória de inconstitucionalidade. Esse entendimento se tornou assente com a decisão tomada em caso que envolvia a questão da nacionalidade dos filhos provenientes dos chamados “casamentos mistos”. Estabeleceu-se que a lei simplesmente inconstitucional, mas que não teve sua nulidade declarada, não mais poderia ser aplicada. Tanto numa como noutra espécie de decisão, somente se admitiria a aplicação da lei inconstitucional ou nula, se “da não-aplicação pudesse resultar vácuo legislativo intolerável para a ordem constitucional”113 (grifo do autor).
A dificuldade de aceitação desse entendimento está no fato de que a idéia da declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, ao conter uma ordem para que o legislador providencie as alterações legislativas necessárias para afastar tal incompatibilidade, é de que, enquanto isso não seja feito, a lei inconstitucional continue sendo aplicada. Assim, se plenamente válida a formulação do Tribunal Constitucional, tornar-se-ia supérflua a declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade114.
No que tange aos efeitos retroativos da decisão de inconstitucionalidade, tanto na de mera incompatibilidade como na declaratória de nulidade, admite-se, no processo penal, mesmo que tenha havido coisa julgada, que se revise o procedimento com base na decisão da Corte Constitucional (§ 79, (1), da Lei do Bundesverfassungsgericht). Já no que diz respeito às demais ações, a Lei do Tribunal Constitucional fixa a coisa julgada como limite para a retroatividade, inclusive nos casos em que a lei inconstitucional tenha sido declarada nula (§ 79, (2)).
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