Os caminhos misteriosos da ficção nem sempre deixam explícitas as marcas da História, mas certamente sugerem à percepção intuitiva o mergulho na cultura. Tratado da Altura das Estrelas, registro literário de uma extensa e profunda viagem, pode pegar o leitor de várias formas: ou na aventura das navegações do século XVI; ou no deslumbramento da palavra poética; ou na catarse identitária de um povo.
Sinval Medina, em um de seus romances, Memorial de Santa Cruz, já se lançara à grande pergunta – quem somos? Nos anos 1980, trouxe à tona a saga brasileira do século XX. Santa Cruz, herói (ou anti-herói) se debate contra as adversidades com a picardia dos sobreviventes. Já no Tratado da Altura das Estrelas, o romancista ancora a imaginação em tempos remotos. João Carvalho e Carvalhinho, pai europeu e filho das Américas, vivem a trama fundante do Brasil pós-Cabral.
Dessa tessitura ficcional que o autor demonstra dominar tanto nas obras anteriores quanto nas posteriores, erguem-se personagens emblemáticos do século XVI, mas o primeiro plano pertence ao filho de índia com português, semente mestiça da aventura humana em terras de Santa Cruz. Ao que tudo indica, a alma brasileira mede constantemente a altura das estrelas para não sair derrotada. E não fosse a epopeia sufi ciente para levar a leitura avante, o embalo da linguagem criaria outro encantamento. Do nômade português aos sedutores índios dos trópicos, a palavra inventiva se alarga em tons e sonoridades que só o toque mágico do ficcionista consegue reger.
A frase do romance de Medina exala odores das naus, das matas atlânticas, dos impérios do Oriente, dos portos europeus. O gesto e o sabor da arte animam uma descida aos infernos para então se perguntar: de onde viemos e a que altura das estrelas está o porvir? Certamente o autor não dá voz à consciência em meio às borrascas da experiência coletiva; mas, no abismo da poética que vocaliza a urdidura do confronto Europa-América, todo o brasileiro se encontrará. Tratado da Altura das Estrelas se oferece então como espelho profundo das peripécias seiscentistas do Novo Mundo.
Cremilda Medina